“Nova” Política de Atenção Básica?

A “Nova” Política de Atenção Básica de 2017: avanços, silêncios ruidosos e retrocessos esperados

Escrevo esse texto em um vôo entre Salvador e Porto Alegre na iminência de aprovação da “nova” política nacional de atenção básica (PNAB) na reunião de amanhã (27/07/2017) da Comissão Intergestores Tripartite (CIT). Esse texto será sintético ao máximo (ante a complexidade do tema) para ser direto ao ponto, acessível e escrito rápido.

Me baseei na minuta que circulou e que está acessível no link

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Esse texto se divide em 5 seções:

– Avanços

– Um alerta: o que é a PNAB e como entendê-la. Texto e norma.

– Reforço de normas que já estavam em outras portarias.

– Mudanças de normas e, portanto, com consequências – sobre os ACS, sobre a equipe que não é de saúde da família e sobre o pacote mínimo de atenção básica.

– Conclusão.

AVANÇOS

De partida, é preciso reconhecer que a PNAB, enquanto texto, tem alguns avanços: sinais da vitalidade desse conjunto de sujeitos sociais e instituições que defendem e lutam pela atenção básica. O texto foi atualizado (a PNAB vigente é de 2011) incorporando referenciais, conceitos e elementos de outras políticas e ações que compõem a política de atenção básica em sentido amplo, além de debates atuais sobre o tema. Assim, foram incorporados também diretrizes, conceitos e aprendizados proporcionados pelo(a): PMAQ, Telessaúde Brasil Redes, implementação do eSUS, políticas de formação relacionadas ao Mais Médicos, Requalifica UBS, implantação dos protocolos de atenção básica, cadernos de atenção básica, ações de promoção etc.

Como exemplo, ficaram mais robustos os debates sobre informatização e direito de cada ente à informação, acolhimento, processo de trabalho, vigilância e promoção da saúde entre outros. Muitas coisas que eram “padrão de qualidade” no PMAQ (acesso, gestão do cuidado, participação do usuário, padrão visual interno da UBS etc.) ganharam o formato de texto na PNAB – incorporações positivas na maioria dos casos, mas negativas em outros, como direi à frente. Muitos conceitos que eram trabalhados em processos formativos do DAB e da SGTES, também o foram: do curso de apoio matricial para NASF à segurança do paciente e gestão do cuidado para as equipes.

Vemos também alguns modismos, alguns retrocessos em termos de conceitos, mas, sinceramente, no geral, o texto melhora naquilo que é diretriz de ação.

UM ALERTA: O QUE É A PNAB E COMO ENTENDÊ-LA. TEXTO E NORMA.

Contudo, há um alerta essencial: a federação brasileira impede que qualquer esfera executiva de governo determine ações e obrigações para outra. Ou seja, mesmo que na PNAB esteja escrito “tem que ser feito”, “deve” e etc. tudo não passa de recomendação, a não ser que se preveja uma conseqüência que esteja no âmbito do que o Ministério da Saúde (MS) tem poder para fazer. Exemplo: se há a definição do que deve ter obrigatoriamente em uma equipe, a conseqüência pode ser o não repasse de recursos para as equipes que não cumpram aquela condição estabelecida. Isso tem que estar explícito e normatizado conforme exige a legislação. Fora isso, “são só palavras”.

Claro que uma conceituação de acolhimento pode fortalecer o discurso de um gestor ou profissional em uma negociação com a equipe, mas o que fará ser implementada são todas e complexas ações, processos e negociações que terão que ocorrer para mudar as práticas, interesses etc. da equipe que faz (ou deveria fazer) o acolhimento. Também um gestor municipal pode incorporar uma atribuição profissional nova prevista na PNAB no estatuto do servidor ou no contrato de trabalho de uma categoria profissional, mas até fazer isso, se a regra atual o impedir, o que está na portaria ministerial seguirá quietinha lá sem condições de concretização. A portaria não tem a capacidade de sair andando e mudar o cuidado à saúde das pessoas nem a práticas de profissionais e gestores. Não adianta dizer a ela “levanta-te e anda”. Veja a tinta perdida na PNAB sobre financiamento tripartite com absolutamente zero de conseqüência.

Então, o que mais nos interessa é a PNAB como norma, atento ao que ela modifica de fato enquanto política do governo federal. Analisaremos isso a seguir e aí tem coisas muito preocupantes.

REFORÇO DE NORMAS QUE JÁ ESTAVAM EM OUTRAS PORTARIAS

Não gastarei tempo aqui tratando de temas que já estavam em outras portarias e que pretende-se incorporar na PNAB. Só darei dois exemplos. As regras que exigem implantação de prontuário eletrônico, sob pena de cortar o repasse de recursos. O alargamento das atribuições dos agentes comunitários de saúde (ACS), determinando o que é ampliado a eventuais normativas do MS (quem lembra da polêmica da portaria das atribuições dos ACS em meio à epidemia de Zika?). Ficarei nesses dois exemplos, para não tratar de vários outros e nem de temas que parecem que mudam, mas são reafirmados em suas potências (várias) e fragilidades (algumas importantes) como o NASF: situação na qual seus principais problemas não viraram objeto de ação.

MUDANÇAS DE NORMAS E, PORTANTO, COM CONSEQUÊNCIAS

Aqui residem as mais importantes e consequentes mudanças da PNAB. A PNAB tratou, por exemplo, de gerentes nas unidades, de educação permanente, de gestão do cuidado, mas, nesses casos, nenhuma norma/ação/dispositivo político/econômico/administrativo foi previsto para dar consequência ao texto: “são só palavras”.

Mas, alguns silêncios são ruidosos porque eles têm mais efeitos que centenas de palavras. Vamos a três exemplos?

– Não há mais um número mínimo de ACS obrigatório por equipe de saúde da família e eles são opcionais nas recém descritas equipes de atenção básica.

Procurem ver lá qual o número mínimo de ACS por equipe de saúde da família. Não acharão mais, antes eram 4 (e era definido na equipe de EACS), agora o texto não diz mais nada e lhe faz deduzir que seja 1. Assim, ao revogar a PNAB de 2011 nenhuma equipe de saúde da família será mais obrigada a ter 4 ACS. Se todas saírem de 6 (a média) para 1 o Brasil poderá ter na segunda feira seguinte menos 200 mil ACS. É um jogo de “engana Mané” dizer que a quantidade de ACS tem que obedecer a legislação vigente. Pois a que regulava o mínimo de ACS é a atual PNAB-2011. A legislação (emendas e leis) vigente dos ACS diz os critérios máximos para ter ACS em um município financiados pelo governo federal e recomenda o critério, mas não obriga mínimo nem por equipe nem por município. Ou seja, a PNAB muda algo no silêncio, talvez por receio da polêmica que aconteceu no ano de 2016 (quando se tentou desobrigar que as equipes tivessem ACS) e das promessas que o ministro fez para os ACS (de que não levaria isso a cabo).

– A “nova” equipe de atenção básica tradicional será ou não financiada?

A “nova” PNAB baseou no PMAQ as definições sobre o que seria equipe de AB não saúde da família só que, no PMAQ, isso só serve para reconhecer e autorizar que essas equipes possam se comprometer com diretrizes da PNAB e promover modificações no processo de trabalho, cuidado à saúde e etc. A intenção nesse caso é  induzir movimento na medida que uma que já exista possa se qualificar e, conseguindo ser exitosa nisso, receber recurso federal. Há uma preocupação de não comprometer recursos com modelos, muitas vezes, pouco efetivos e que não apresentem adequado custo-benefício e, ao mesmo tempo, reconhecer e valorizar aquelas que cumprem a PNAB mesmo se organizando com outra modelagem.

Muito diferente seria pagar a priori essas equipes. Nesse caso, teríamos uma espécie de inércia ou mesmo retrocesso adaptativo. O que poderia definir se um gestor optaria pela saúde da família ou outro modelo provavelmente seria o cálculo matemático do custo para o município (ainda mais em uma situação de perda real de financiamento federal da atenção básica já em 20% e com 20 anos de criminoso congelamento de recursos) uma vez que uma equipe precisa ter todos os profissionais em regime 40 horas e a outra não precisar ter nenhum ACS e nem profissionais de 40 horas. Façam as contas, vejam o que é mais barato: uma equipe com médico, equipe de enfermagem, equipe de saúde bucal e 6 ACS, todos 40 horas ou uma equipe sem ACS e com dois profissionais de cada só que cada um meio turno. Ainda que o MS pague só metade dos minguados 7 mil reais por mês que nunca mais aumentou, seria mais barato para o municípios ter essas equipes com profissionais de meio turno (que na prática vira: passar na unidade pela manhã, atender as fichas e ir para outro emprego).

Ora, esse pleito não é novo e sabemos que está presente nos “bastidores” da negociação da PNAB. Faz parte de dois pactos. Um na postura do Ministério com o SUS: já que eu não vou lhe pagar nenhum tostão a mais, porque o recurso está congelado e todo dinheiro novo é para emendas parlamentares e vocês sabem com qual finalidade, eu libero vocês para fazer o que quiserem, incluindo formatos que, se sabemos que tem resultados muito piores para a saúde do cidadão, de outro lado, vão gastar menos o seu dinheiro.

Outro na relação do Ministério e do Governo Temer com o setor privado. Há uma ação permanente de liberar ações, mercado, demanda e ativos do setor público para o privado. Isso está na tentativa de rever a regulamentação dos planos, de oferecer só um básico rebaixado no público, de ampliar a cobertura da saúde privada e paga e, em uma cajadada só, fazer com que os trabalhadores que atuam no público possam oferecer sua força de trabalho no privado (reduzindo o custo da força de trabalho) e reduzir a oferta e qualidade no público. Os planos de saúde, serviços privados periféricos, clínicas populares e “uber” da saúde agradecem.

– A PNAB define uma atenção básica mínima chamada de “essencial”?

Mais uma vez, a PNAB pega um conceito do PMAQ e o faz funcionar em contrário. No PMAQ, padrão essencial é aquilo que mais de 90% das equipes oferecem, mas lá se reconhece que esse mínimo é insuficiente. O Programa foi criado para desenvolver um processo incremental, que prevê o aumento da exigência a cada ciclo para provocar as equipes a fazerem movimento progressivo de melhoria: de um mínimo inaceitável rumo a uma situação desejável, passando por etapas cada vez mais exigentes.

A “nova” PNAB inventa um “padrão essencial” não como dispositivo analítico ou avaliativo ou ponto 1 de um processo com várias etapas e em movimento, mas como norma que, por si, é mais permanente e mais estanque. Aí mora o perigo: o que será considerado esse essencial mínimo? Qual a conseqüência disso em termos de financiamento? Quando seria revisto? O que determina e disciplina sua revisão? Quais interesses lhe conformam? Eu nunca aprovaria um texto desses (palavras) sem que o dispositivo objetivo da política pública estivesse claro.

Ora, poderá haver aqueles que recém descobriram mecanismos de gestão que foram populares nos planos de saúde no mundo nos anos 90 (que, diga-se de passagem, tiveram resultados pífios ou desastrosos na gestão pública européia) estejam animados com a adoção dos mesmos no Brasil. Ou poderia ser ainda um caso de má (malíssima, na verdade) adaptação de algo que poderia ser positivo enquanto escopo contratualizado com equipes e serviços (vinculados como empregados e serviços do ente que faz a política), mas péssimo como política pública nacional interfederativa. Enfim, difícil saber, pois a PNAB é lacônica sobre isso. Mas, no atual contexto, desculpem meu ceticismo, eu recomendaria aos defensores do SUS mais cautela que entusiasmo. E, se mesmo no entusiasmo não se pode dar passos em falso com a saúde das pessoas, imagina em momentos de cautela?

CONCLUSÃO

O texto tem avanços, e em minha opinião, eles são maioria frente a alguns retrocessos. Mas, a Política de Atenção Básica, enquanto norma política, é silenciosa, dissimulada, falta-lhe tanta coragem quanto lhe sobra de intenções não explicitadas. As notícias sobre como a PNAB está sendo negociada vazam a todo o momento. Sabemos que o Conselho Nacional de Saúde foi excluído do debate, mesmo tendo insistido muito em fazê-lo. Sabemos que ela está sendo construída em instâncias acima do Departamento e até da Secretaria responsável: as conversas que fazemos são “por cima” – dizem.

Por tudo isso, pergunto? Quem defende a publicação de uma nova PNAB, defende por que mesmo? Já que não tem nenhuma norma explícita (ou com coragem de ser explicitada) relevante que justifique a mudança da política de 2011?

Ora, se é uma questão de “dar um banho de loja” nos conceitos, façam uma Nota Técnica do Ministério e, com sorte e adequadas citações, dá até para tentar publicar como um ensaio em um periódico científico. Mas sabemos que esse (o texto) é só o pano vermelho que distrai o desavisado touro…

 

 

 

 

 

Publicado por

Hêider Pinto

Médico sanitarista, pesquisador, professor, mestre em saúde coletiva e doutorando em políticas públicas.

4 comentários em ““Nova” Política de Atenção Básica?”

  1. É lamentável esta situação, morro em comunidade e já é difícil conseguirmos alguma coisa, quando conquistamos….
    A pnab já não é lá grande coisa, agora então…

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  2. Sua análise é profunda é pertinente. Ademais vinda de alguém que conhece muito bem as entranhas da PNAB. Todos perdem nesse jogo do Estado a serviço do capital selvagem. Depois do congelamento dos investimentos em saúde por 20 anos, da aprovação dos planos de saúde popular, nesse tabuleiro de xadrez, precisa reduzir o papel do estado na oferta de serviços de saúde. Assim o terreno para a saúde privada fica mais fértil para o lucro. Equipe menor, mais gente para trabalhar nos consultórios/ clínicas populares. Que tristeza assistir esse desmonte…

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