Parte 2 – Final – O “Novo” Financiamento da Atenção Básica desmonta a saúde da família e prejudica o Norte, o Nordeste e os menores e mais pobres municípios
Por Hêider Pinto[1]
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Vimos na Parte 1 deste texto (acessível neste link) que o desenho de financiamento da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) 1-aumentaria a iniquidade; 2-discriminaria negativamente os municípios mais pobres, menores e das regiões Norte e Nordeste; 3- excluiria 85% dos municípios do país do aumento de recursos; 4- concentraria 72% do repasse nos cinco estados mais ricos do país: São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná; 5-puniria aqueles locais que mais se esforçaram para avançar rumo à cobertura de 100% da população, com qualidade e investindo na saúde da família.
Nessa parte vamos analisar: qual o sentido então dessa política? Qual problema “em tese” ela pretende resolver? Por que ela é inócua na resolução desse problema? Qual seria de fato seu efeito na atenção básica (AB) e na Estratégia de Saúde da Família (ESF)? Por que os gestores municipais acabariam substituindo a ESF por esse “não modelo” ou “modelo qualquer coisa” mesmo isso resultando na piora da saúde, aumento dos custos, da carga de doenças e de anos de vida perdido?
QUAL O SENTIDO DESSA PNAB? QUAL PROBLEMA “EM TESE” ELA PRETENDE RESOLVER?
Argumenta-se que se quer incentivar com recursos “outros modelos” para expandir a cobertura da população
Há um discurso/queixa antigo que atribui ao “engessamento” da ESF (entenda-se: necessidade de ter médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde por 40 horas semanais) a razão da não expansão da cobertura da população. Analisando as causas de não expansão à luz da literatura recente e das políticas públicas dos últimos 10 anos o que vemos? Dois pontos são destacados: um relacionado ao financiamento e outro à insuficiência de médicos para a expansão.
No financiamento teríamos a combinação de três coisas: os recursos para a saúde são poucos e a AB não costuma ser a prioridade; o repasse do governo federal é menor que a metade do gasto que o município tem com a mesma de modo que a maior parte do gasto fica para a gestão municipal; e o gestor local, por diversas razões, nem sempre tem como projeto cobrir 100% da população.
Comparando 2014 com 2010 os repasses federais para a AB cresceram mais de 100% (62% de aumento real – acima da inflação) e saltaram de aproximadamente 34% do custo real que o município tem para aproximadamente 42% (mesmo assim, 50% do custo ficava com o município). Mesmo com esse aumento a cobertura só se expandiu significativamente com o Programa Mais Médicos (PMM): o aumento do financiamento isoladamente não foi suficiente para fazê-la crescer além da média entre 1,2% a 1,4% (depende do modo de cálculo) ao ano desde 2008.
Tendo em vista a dificuldade de ter médicos na AB – seja pela escassez de médicos no Brasil (1,8 por mil habitantes em 2012 e 2,1 em 2015), seja pela não predileção dos mesmos em atuar na AB, seja por resistência à dedicação em tempo integral (40 horas semanais) – várias medidas foram lançadas de 2011 a 2013 que incluíram a flexibilização da carga horária para regiões com dificuldade de ter médicos e a criação dos programas de Valorização da Atenção Básica (PROVAB) e Mais Médicos.
Lembremos que o desenho padrão da AB tradicional demanda ainda mais médicos porque em lugar de um generalista ou médico de família, seriam necessários no mínimo um ginecologista, um pediatra e um clínico. Pretensão fadada ao fracasso em um país cuja falta de médicos e especialistas tem trazido dificuldades para os gestores terem esses profissionais mesmo nas urgências, maternidades e hospitais do interior.
Ora, em um extremo, a flexibilização da carga horária não impactou quase nada no aumento de cobertura. Embora essa medida fizesse parte do senso comum da época e tenha sido pedida pelos gestores municipais. No outro extremo, o PMM (que provê médicos para atuação nas equipes da ESF), também solicitado pelos gestores municipais, promoveu uma expansão entre 6,2% a 9% da cobertura de 2013 a 2015 (depende do modo de cálculo). Ou seja, com apenas um ano e meio promoveu uma expansão maior que os 5 anos anteriores.
E o que aconteceu com a tal da AB tradicional nesse período? Embora tenha sido criado o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e Qualidade (PMAQ) – que prevê financiamento específico para equipes de AB que não são da ESF e que consigam demonstrar em processo avaliativo que desempenham concretamente os princípios e alcançam resultados preconizados pela Política de Atenção Básica – ela não só estagnou como apresentou redução: de 2008 a 2013 de uma cobertura de 13,8% para 13,1%. Com a criação do Mais Médicos houve ainda um pouco de substituição e a queda acelerou: saiu 13,1% para 11,4%.
O que podemos concluir? 1- Que flexibilizar a carga horária – se está claro que é uma medida que pode piorar a qualidade e os resultados da AB, caso prejudique o vínculo com os usuários e o trabalho em equipe – também está claro que não amplia a cobertura. 2- Aumentar o financiamento é necessário, mas por si só não é o suficiente e, claro, reduzi-lo promove a estagnação ou redução. 3- Um Programa como o Mais Médicos demonstrou que enquanto foi expandido (até 2015 quando chegou a 18.240 médicos em equipes de SF) ampliou a cobertura – foi a medida mais efetiva com esse fim do que qualquer outra já utilizada.
Portanto, se a intenção do Governo Temer/Barros fosse a de ampliar a cobertura ele aumentaria o financiamento da AB e faria como foi feito em 2013: identificaria a necessidade e interesse de expansão dos municípios e ampliaria o Mais Médicos nessas localidades. Mas, nos dois casos, está fazendo o contrário: já deixou o financiamento da AB perder quase 20% de valor real e reduziu o tamanho do PMM.
Seria então o caso de valorizar a AB que não é Saúde da Família por alguma razão ainda não clara?
Em 2011, ano criação da PNAB vigente, aconteceu grande debate sobre a questão de financiar ou não equipes de AB que não se organizassem na lógica da ESF. Algumas razões muito importantes fizeram com que a decisão fosse a de não fazer esse financiamento a priori.
Em primeiro lugar porque não há um modelo, há um “não modelo”: o que não é saúde da família se organiza dos mais variados modos sendo que alguns com razoável cumprimento dos princípios e muitos sem respeitar sequer elementos essenciais como territorialização, adscrição de clientela, vinculação, trabalho multiprofissional, busca de uma ação integral e resolutiva etc. À frente trago dados que quantificam essa afirmação.
Em segundo lugar porque muitos estudos, nacionais e internacionais, mostram a enorme superioridade, em termos de resultados na saúde da população, da ESF sobre a AB que não é ESF. O que desautoriza qualquer governo responsável a ignorar isso e considerar que sejam equivalentes.
Em terceiro lugar porque a AB que não é ESF comumente não se organiza em equipe e sim em serviços e não tem área ou população delimitada e cadastrada. Também não acompanha essa população e seus indicadores de saúde. Assim fica difícil definir parâmetro de financiamento e executar o mínimo de monitoramento, avaliação e controle.
Por isso tudo a decisão foi não financiar a priori esse modelo “não modelo”, mas permitir que aderissem ao PMAQ porque assim, para aderir, teriam que se organizar minimamente com território, cadastro da população, sistema de informação e constituição de um equipe de trabalho com carga horária de profissionais minimamente compatível para conseguir produzir vínculo e atender as pessoas em todos os ciclos de vida (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos de ambos o sexos). E, para seguir recebendo recursos depois da adesão, passariam por uma avaliação que verificaria o quanto eram de fato equipes que seguiam os princípios e alcançavam o mínimo de resultados exigidos.
O fato é que o desempenho dessas equipes não ESF (chamadas no PMAQ de parametrizadas) foi muito aquém do esperado. Como dito na Parte 1, o Brasil hoje poderia ter algo como 8 mil equipes dessas. Apenas 231 (menos de 3%) delas tiveram a intenção e condições de aderir ao PMAQ (3° ciclo) cumprindo aquele mínimo do mínimo. Na última avaliação (2° ciclo), o desempenho das mesmas foi muito inferior à média do conjunto das equipes de SF, sendo que somente 12 foram avaliadas como “muito acima da média” e quase metade recebera a pior avaliação: qualidade “insuficiente”.
Ou seja, o PMAQ repetiu ainda com mais contundência o que as pesquisas já mostravam. O Ministério tem esses dados: peçam para mostrar! E, mesmo depois disso, mesmo depois de 2 ciclos de ampla avaliação com os resultados de posse de mais de 60 Universidades e grupos de pesquisa, o Ministério aparece agora propondo financiar essas equipes a priori e com um regra que parte de um piso de qualidade bem inferior ainda ao que era o mínimo do mínimo para a adesão ao PMAQ.
Ora, a proposta da PNAB Temer/Barros não exige absolutamente nada e dispensa esse serviço de ter qualquer qualidade e compromisso com a população. Uma “equipe” poderia receber recursos e, por exemplo, ter 10 ginecologistas, cada um fazendo um turno por semana; 5 enfermeiros e técnicos, cada um fazendo um dia por semana; nenhum ACS; pode não conhecer sua população; funcionar em regime de pronto atendimento de baixíssima resolubilidade; ter trabalhadores que nunca conseguiram fazer sequer uma reunião, que dirá atuar em equipe; e ter um atendimento no qual cada vez em que o usuário vai à unidade de saúde é atendido por um profissional diferente quebrando dois dos mais importantes fatores para a qualidade da AB: o vínculo e a longitudinalidade do cuidado (a relação próxima, responsável e humanizada com o paciente e o acompanhamento dele).
É um escândalo!
Mas, quando vemos que 72% dos recursos iria para menos de 821 (15%) municípios e para os 5 Estados mais ricos, então fica claro que o objetivo não é buscar qualquer qualidade, é outro bem diferente e que nada tem a ver com a saúde da população.
Mas o que há então por trás dessa proposta, qual seu objetivo latente (não dito)?
Como disse na Parte 1 “há caroço nesse angu”! Se a mudança proposta é inútil para expandir a cobertura, se ela não se sustenta com base na preocupação com a oferta de um mínimo de qualidade para a população, se ela resulta no repasse de 72% dos recursos para os 5 estados mais ricos do país e para apenas 15% dos municípios, por que, mesmo com isso tudo, está sendo defendida também por alguns gestores dos estados e municípios que não seriam “beneficiados”?
Para entendermos isso há um pressuposto fundamental bem claro na produção que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) fez junto ao DAB de 2011 a 2013: para cada R$ 1,00 de repasse feito pelo Ministério para a AB o município tem que aportar uma quantidade que está em média entre R$ 1,20 a R$ 1,60. Além disso, dentre o conjunto dos componentes de financiamento da AB o que financia a ESF é tido como o que mais implica em exigências e que mais precisa ser complementado.
Consideremos que o repasse para a equipe não ESF seja, como quer o atual Ministério, a metade do valor repassado para uma ESF, portanto só R$ 3.565,00 a menos. Considerando a média de 6 ACS por equipe da ESF, só o fim da exigência de que tenha-se ACS na AB faria com que o gestor local deixasse de complementar algo em torno de R$ 3.000,00. Caso pague algo mais como insalubridade e auxílio de qualquer tipo (alimentação, vestuário, protetor solar etc.) o valor que deixaria de ser gasto já “compensaria” a redução do recurso repassado.
Mas o impacto maior está relacionado a um fator econômico importante. Em um cenário de pouca exigência combinado a um mercado de trabalho como o médico, no qual há mais vagas que trabalhadores para ocupá-las, a tendência é a imposição da dinâmica hegemônica desse mercado: vários vínculos de trabalho, no máximo 20 horas semanais de atuação em cada emprego, predileção por inserções mais verticais (tipo plantão) e pactuação de produção (tipo consultas) e não de responsabilidades. O que o Mais Médicos ajudou a mudar nesse mercado de trabalho (fazendo com que os gestores municipais pudessem ser mais exigentes com os médicos) a nova PNAB pode destruir.
É evidente que é mais barato contar com um médico e um enfermeiro que não precisa estar o dia inteiro na unidade e nem todos os dias da semana (de modo que possa ter outros empregos durante o dia) além de ter “flexibilidade” para “passar” na unidade atender as “fichas” (os pacientes marcados) e ir para o outro emprego (quando as 4 horas do turno da manhã viram a “passada” de 8 às 9h30 com o atendimento de 10 pacientes em uma consulta rápida e de baixíssima qualidade).
Pode-se oferecer uma remuneração mais baixa para um profissional ao qual não se cobra a realização de visita domiciliar, a programação do cuidado aos grupos de maior risco e vulnerabilidade, a participação na organização da equipe e o atendimento integral da população (crianças, mulheres, homens).
Se gasta menos com um profissional que não precisa de formação específica e, de repente, já trabalha no município em outro lugar: seja em um plantão ou compondo uma escala no pequeno hospital ou pronto atendimento. Poder-se-ia combinar o trabalho no “postinho” com aquele da clínica privada popular que atende plano popular no bairro – em uma “ida” ele já atuaria nos dois locais.
Até 2016 o gestor municipal dizia a um profissional que “não conseguia” não adotar o modelo da ESF e, com o Mais Médicos, passou a não ficar mais refém, tendo que aceitar inserções nas quais o profissional se comprometia com metade da carga horária e das obrigações. A partir de 2017 o profissional saberá que o gestor poderá adotar o “modelo” que quiser e negociará o que aquele melhor para sua inserção nos demais empregos que tem ou passará a ter. O Secretário de Finanças e Administração também saberá que agora poderá terceirizar e “pejotizar” a contração dos profissionais privilegiando a oferta de consultas, secundarizando o tempo de dedicação e evitando qualquer vínculo trabalhista.
Em suma, em uma situação de poucos recursos e sem perspectivas de aumento nos próximos 20 anos o efeito esperado é o seguinte:
– em primeiro lugar, identificar todos os profissionais (médicos e enfermeiros) já atuando no município, em qualquer área (tipo centro de saúde e de especialidades, antigos pronto-atendimentos, etc.), e cadastrar os mesmos como equipe para fazer “combos” de 40 horas e figurar no sistema (mas não na prática) como equipe de AB não ESF. O interesse seria captar mais recursos federais, não expandir e melhorar acesso e qualidade;
– em segundo lugar, identificar as áreas que as equipes da ESF seriam “menos” necessárias e transformar as mesmas em equipes de AB. Substituir o modelo. Digamos que poderia começar a se achar que as do centro – onde muita gente trabalha, mas poucas moram e onde tem muito morador de rua – poderia voltar ao modelo dos anos 80. Depois algumas áreas mais “ricas” nas quais a população tem plano de saúde. Depois até aquelas áreas da periferia nas quais o prefeito já não teve tantos votos mesmo e está mais relacionada aos vereadores e candidatos da oposição… e, “já que a reação não está tão grande e o dinheiro cada vez mais curto, bora ir substituindo tudo e onde der logo”; e
– terceirização e precarização tanto das relações de trabalho quanto da atenção à saúde ofertada à população.
Daí porque o interesse não é exclusivo dos 15% de municípios beneficiados. Mas isso é um engano absoluto. Os diversos estudos estão aí para mostrar o que a ESF economiza, quando comparada à AB não ESF, em termos de redução de internações, redução de encaminhamentos e solicitação de exames desnecessários, prescrição de medicamentos e procedimentos desnecessários e mesmo interrupção de quadros de agravamento de diversas condições de saúde. É um valor em muito superior à economia que aparece à primeira vista em uma análise mais rasa que desconsidera os efeitos econômicos no sistema e também negligencia o objetivo maior: a qualidade da atenção à saúde e resultados na qualidade de vida do cidadão.
O que a AB precisa é de retomar o processo de aumento de seu financiamento (PAB Fixo e Variável), voltar a expandir o Mais Médicos para todos aqueles municípios que têm necessidade de expansão, mas não tem condições de atrair profissionais, e investir, via PMAQ (que aceita qualquer modelo contanto que demonstre resultados), na qualidade tanto da ESF quanto das AB não ESF. A imposição ao país, sem debate e contra as posições do Conselho Nacional de Saúde e as manifestações de praticamente todas as instituições acadêmicas e da saúde coletiva e movimento sanitário brasileiro, dessa PNAB “anti-saúde da família” é um verdadeiro crime contra a saúde da população e uma ação destrutiva que joga fora bons resultados de uma experiência que vem sendo bem sucedida há mais de 23 anos.
[1] Médico sanitarista, mestre em saúde coletiva, doutorando em políticas públicas, foi diretor de Atenção Básica da Bahia de 2007 a 2009 e diretor nacional de AB de 2011 a 2014.